Na casa da Rua Costa Pinto. A partilha de hoje é um desabafo sincero, sentido e magoado. As palavras são medidas por tempo e só precisavam de um pouco mais de tempo para serem entendidas — pelo tempo. Há vinte anos os meus pais tomaram uma das piores decisões de sempre. Há dois anos recebemos a notícia que nos iria abalar muito. Há um ano que penso nestas palavras e em como trazê-las para aqui. Ontem foi a última noite na nossa casa e hoje a nossa vida vai mudar. Tempo. É tudo o que dá valor aos nossos dias.
Foi há dois anos atrás, depois do Domingo de Páscoa, que recebemos uma carta que nos deixou a todos sem chão. Ou, neste caso, sem tecto. Vou-vos contar a história da Casa da Rua Costa Pinto. Porque é uma história bonita.
O número 67 da Rua Costa Pinto, em pleno Centro Histórico de Paço de Arcos, faz parte da nossa vida há 70 anos. Foi aqui que o meu avô cresceu. Aprendeu a ler, a escrever e a fazer o que fazia quando o conheci. O meu Avô António. Foi aqui, neste prédio centenário, que alguém lhe estendeu a mão e o agarrou, indicando-lhe um rumo. Foi também algures por aqui que ele conheceu a minha avó. A minha querida Avó Maria, que continua linda.
Percebem que esta rua — e esta casa — foram importantes para a minha existência porque, bem, a sua história trouxe a história da minha mãe, que acabou por trazer também a minha história. A minha, que começou há pouco mais de 25 anos, só se cruzou com esta casa há apenas 20, mas foram os mais importantes.
Foi aqui que cresci. Dentro destas paredes, que cresceram comigo, que mudaram comigo. Foi na Rua Costa Pinto que também aprendi a ler e a escrever. Foi no Jardim de Paço de Arcos que aprendi a andar de bicicleta e que caí, várias vezes — e entre o cair e o conseguir, lá ia eu dar o pão aos patinhos. Foi no Mercado de Paço de Arcos que visitei, vezes sem conta, o meu avô António enquanto ele trabalhava (e lhe pedia uma daquelas pastilhas Orbit, que ele escondia sempre no bolso do blusão). Foram estes os vizinhos que me viram crescer, foram os sons da Igreja e das gaivotas que aprendi a escutar e foram os cheiros desta rua que aprendi a amar. No verão cheira a maresia. No inverno cheira a lenha na lareira.
há vinte anos os meus pais tomaram a pior decisão da vida deles
Há vinte anos, os meus pais tomaram a pior decisão da vida deles. Aceitaram dedicar um investimento de uma vida nesta casa. Fizeram-no em parte por nós, por mim e pela minha irmã. Por eles também mas, sobretudo, fizeram-no pelo meu avô.
A casa nunca teria sofrido obras e precisava de um telhado, de paredes e chão novo. Precisava de electricidade instalada, de canalizações e algumas infra-estruturas restauradas. No fundo, esta casa nada mais era do que quatro paredes rendilhadas, algumas telhas semeadas e muitas histórias contadas.
Os meus pais penhoraram a casa onde estávamos, pediram um empréstimo absurdo e fizeram desta ruína uma casa e dessa casa o nosso lar.
Estávamos todos muito felizes e o meu avô estava radiante. Lembro-me perfeitamente de visitar a casa, ainda em ruínas, agarrada à mão dele e de não acreditar que esta ia ser a minha casa. E lembro-me de, um dia, entrar pela porta 67 e ver um verdadeiro palácio, em ponto pequeno, todo recuperado, com cheiro a tinta fresca e muita luz.
A casa estava linda, como nunca ninguém a tinha visto. Aquela casa, agora, já não era só uma casa.
Era a nossa casa!
Mas a casa nunca foi nossa...
A casa foi uma doação feita à igreja, há muito tempo atrás. Muito tempo antes desta história começar. E como doação, o imóvel não pode ser vendido; os meus pais ainda tentaram, mas sem sucesso. Acordaram apenas que, durante o pagamento do empréstimo ao banco, a renda teria que ser ajustada (estamos a falar de uma casa que, à partida, nem água canalizada teria). Assinaram um contrato-tipo e esperavam viver felizes para sempre.
Até há dois anos atrás...
Quando recebemos uma carta de despejo. Assim, sem mais nem menos. O nosso senhorio — a igreja — concedeu-nos 2 anos (obrigados pela lei) para empacotar 20 anos da nossa história. Ingénuos foram os meus pais, claro, que confiaram. Confiaram num contrato-tipo de há 20 anos atrás, confiaram no homem que apregoa a boa-vontade e que se "move pela fé". Mas a fé é pequena substância quando há outros valores envolvidos. A fé rapidamente se torna secundária quando em jogo estão outros interesses. Os meus pais escreveram várias cartas ao senhor padre, à procura de um acordo, uma actualização de renda ou simplesmente saber o 'porquê' de isto estar a acontecer. Os meus pais não queriam sair desta casa.
E eu também não.
Sempre imaginei sair desta casa e ter a minha casa com ele. Mas tinha a certeza que iria voltar para a Casa da Rua Costa Pinto. Sempre imaginei que seria aqui que os meus filhos fossem aprender o verdadeiro simbolismo no Natal, que vivessem a experiência como eu tive o privilégio de viver. Sempre pensei que ia poder partilhar com eles um pouquinho daquilo que foi a minha infância aqui.
Mas o padre não respondeu. Nunca respondeu. Como, aliás, nunca se interessou pela casa. Esta manteve-se, sim, pelo esforço e contínuo investimento dos meus pais. As nossas cartas nunca tiveram retorno. As várias reuniões solicitadas pelos meus pais nunca tiveram hipótese e o "porquê" nunca teve uma resposta.
É a vida.
É injusta, é fria, é desmedida. Tão duro e simples quanto isso. Eu sei que é só uma casa. Mas não é só uma casa. É — era — a nossa casa. Aquela que nos deixava com saudades se estávamos muito tempo longe dela, que nos consolava com o seu cheiro tão próprio. Conhecíamos os caminhos de olhos fechados e sabíamos de cor todos os sons desta casa. É a vida. Há coisas piores. Felizmente estamos todos bem, temos saúde, temos uma alternativa e, sobretudo, temo-nos uns aos outros.
Feita de fins e de começos.
E, como tudo na vida, também esta nossa história é feita de fins e de princípios, de velhos e novos capítulos, de começos e recomeços.
O primeiro Natal nesta casa foi também o último Natal do meu avô.
O último pequeno-almoço aqui significa que haverá um primeiro, noutro lado. A última noite nesta casa será sempre sucedida pela primeira noite na outra. Há sempre um princípio para todo o fim. Mas, agora, não importa muito. Porque o agora é o fim de uma época que acaba, que não volta mais. E que vai deixar saudades. Muitas.
Vamos voltar a falar desta rua, desta casa e desta história. Guardámos algumas partilhas bonitas desta zona histórica de Paço de Arcos para o fim. Para que este fim não custe tanto. Ou para perpetuar uma inevitabilidade — a de ter que dizer adeus a esta casa. Ainda assim, vamos partilhar algumas fotografias em jeito de homenagem a esta terra. E vamos recordar, uma vez mais, que a pior decisão dos meus pais acabou por ser também a melhor, pois só assim podíamos ter feito parte da história da #CasadaRuaCostaPinto.
Oh Sara, que relato tão emotivo.
ResponderEliminarRecebi esta notícia por ti, há dois anos atrás (bolas, já passou tanto tempo), e esperei uma resolução bonita como essa história que contaste. Quero acreditar que esta resolução que encontraram é também ela bonita, é que novas memórias e novos sonhos vão poder ser realizados noutro espaço, e que esse novo espaço, seja tão vosso como a Casa na Rua Costa Pinto foi. Um beijinho e um abraço apertado
Que texto bonito! De facto, uma casa pode ser muito mais do que uma casa e é tão bom quando assim é. Ficam as memórias e as histórias partilhadas :)
ResponderEliminarFiquei com um sentimento tão agridoce ao ler este teu post. Dá para ler perfeitamente a tua emoção, amor e carinho pela casa e a revolta (justificada) de toda a situação. Esta é uma daquelas histórias que vemos no jornal e associamos "aos outros" mas é bem real!
ResponderEliminarAgora há que manter a visão positiva e saber que fizeram o máximo que podiam. As coisas são como escreveste, o importante é mesmo estarem juntos e com saúde! Boa sorte para a nova etapa!
Marta Rodrigues, Majestic ♡
Um beijinho muito grande e que a nova casa seja um óptimo recomeço ♥ Com o pé direito, sempre!
ResponderEliminarUau Sara, é só pelas palavras e palas fotografias que te conheço e expressas-te através das duas de uma forma invejável. Este texto está muito bonito, comovente e sobretudo acho que é uma bonita homenagem! Uma casa não é só uma casa quando guarda tanto das nossas vidas lá dentro, mas essas memórias não ficam só na casa, ficam também no nosso coração! Melhores dias virão e tens ainda muitas histórias por escrever e que terão finais felizes!
ResponderEliminarBeijinhos,
Daniela
Another Lovely Blog!, http://letrad.blogspot.pt/
Querida Sara, nem sem bem o que te diga. Por um lado, gostei deste teu desabafo tão aberto e vulnerável, tão bem escrito que senti a mágoa e a (já) saudade nas tuas palavras. Por outro, claro, fico triste que as coisas que assim sejam; a situação é deveras triste. Mas mostras bem a pessoa feliz e bem resolvida que és ao - mesmo no meio disto tudo - conseguires ver que os fins levam a outros inícios.
ResponderEliminarDesejo-vos (a ti e à tua família) muitas e boas futuras memórias e momentos na nova casa. A casa que habitamos é muito importante para a nossa vida, mas no fundo se pensarmos nisso, uma casa não é necessariamente um lugar, mas um conjunto de coisas, pessoas, momentos e memórias. E isso vocês têm e sempre terão. Enquanto existirem essas coisas e saúde, tudo está bem. :)
Um beijinho muito grande, Sarinha.*
Joan of July
Nem sei dizer o quanto lamento a tua situação, querida. Não é só uma casa, é a vossa casa! O local onde viveram momentos felizes e onde podem reviver facilmente memórias felizes.
ResponderEliminarLamento o que estás a passar mas lamento ainda mais a corrupção de uma instituição que se diz ser pioneira de compreensão e solidariedade. É triste quando não se pratica aquilo que se prega, e ainda mais tristes quando os interesses monetários sobrepõem os valores morais.
Oh Sara... lamento muito.
ResponderEliminarNo entanto, e como dizes, um fim é também um recomeço e deste lado só desejo que deste recomeço venham muitas coisas felizes <3
Raquel
Que texto tão bonito e sentido! <3
ResponderEliminarA casa vai ficar sempre na vossa memória e, não podendo os teus filhos senti-la, poderão ouvir as histórias maravilhosas que tens para contar e criarem as suas memórias numa outra casa, tão feliz como fora essa...
oh, fiquei triste com a história :(
ResponderEliminarhttp://arrblogs.blogspot.pt/
O quê?!? E depois vêm falar de pecados e afins... Como é que é possível isto acontecer?! Nem uma resposta dar... Não achamos nada normal! Uma vida, mil memórias, tudo a valer nada. Muito provavelmente senão tivessem investido tanto e dar um sentido a esta casa, ninguém vos expulsaria. RIDICULO!
ResponderEliminarMuita força! Vão ver que vão construir muitas outras histórias num outro local igualmente bonito!
Muita coragem querida! E as boas memórias, com certeza, irão confortar quando a saudade mais apertar :)
ResponderEliminarHistória linda, apesar de triste!
ResponderEliminarEnvolvi-me na escrita como se estivesse a ler um livro.
Boa sorte para o novo começo!
Ó Sarita comoveu-me muito o teu texto. Eu gostava dessa casa de bonecas tão moldada à Vossa personalidade. Tenho a certeza que vocês juntos serão sempre felizes em qualquer lado. Beijinhos para todos.
ResponderEliminarTenho muita pena Sara :(. É muito triste ter de sair de um sítio que nos diz tanto para ir para outro que ainda não nos diz nada, ainda para mais pelo motivo que contaste.
ResponderEliminar♥ Espero que corra tudo bem na casa nova e quando voltares a passar pela casa da Rua Costa Pinto só te lembres dela por bons motivos.
Beijinhos
Que história tão bonita e triste ao mesmo tempo...
ResponderEliminarFiquei de coração apertado a ler esta história, talvez porque vivi algo semelhante mas ao mesmo tempo muito diferente, ao invés de 2 anos tive 24 horas...que se estenderam para 1 semana e nada mais.
ResponderEliminarOs recomeços podem ser algo maravilhoso, uma boa desculpa para mudar coisas na nossa vida e tenho a certeza que mesmo que não acordes de novo, no teu quarto na Rua Costa Pinto, vais sempre levar na memórias tudo o que de bom aquela casa trouxe.
Tu és forte, Sara!
THE PAPER AND INK
Que triste e injusto para todos vocês, Sara :( Inacreditavelmente triste. Mas enquanto estiverem juntos, haverá sempre "casa". Porque esta é também família, união e amor. E os teus filhos, um dia, poderão não passar Natais na Casa da Rua Costa Pinto mas passarão, certamente, noites à lareira enquanto escutam as maravilhosas histórias sobre ela.
ResponderEliminarUm beijinho e muita força <3
Um abraço, Sara.
ResponderEliminarA mudança nunca é fácil e tirarem-nos o tecto, as paredes, as memórias que guardamos religiosamente na alma e no coração não podia ser pior... mas tenho a certeza de que irão construir muitas memórias lindas e felizes no novo ninho, no novo lar, no novo futuro.
ResponderEliminarÉs uma pessoa muito especial e as tuas palavras e imagens não nos deixam indiferentes <3 por isso é que tens um dos blogues mais honestos e bonitos pelos quais já me cruzei...
Um beijinho muito grande meu amor e muita força!
Sabes, Sara, eu acredito que mais cedo ou mais tarde te vou saber nessa casa, a criar os teus filhos. Não sei explicar, mas sinto-o, acredito.
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